segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Artigo - Trabalho escravo no século 21

Mônica Sifuentes - magistrada 1ª Região

Em março de 1741, um alvará régio ordenou que todos os negros que fossem encontrados nos quilombos e ali estivessem voluntariamente recebessem no ombro uma marca de fogo com a letra F. Se o mesmo negro fosse apanhado pela segunda vez, nas mesmas condições, teria uma de suas orelhas cortadas. A terceira vez a pena seria a morte. Era o recrudescimento da política colonial da Corte Portuguesa contra a fuga de escravos, cuja força de trabalho se tornara essencial para a exploração do ouro em Minas Gerais, metal do qual dependia totalmente a vida econômica da Metrópole. Um século e meio depois, por imposição dos ingleses, que não queriam ver as mercadorias brasileiras barateadas pelo baixo custo da mão de obra, decretou-se a abolição do trabalho escravo no Brasil. Houve quem dissesse à princesa Isabel ter sido essa uma das causas da derrubada da Monarquia.

O século 21 se iniciou marcado pela revolução tecnológica e pela substituição paulatina da mão de obra humana pela robotização. É surpreendente que - passados tantos anos, guerras, mudanças comportamentais e avanços científicos - ainda se ouça falar em erradicação do trabalho escravo no Brasil. Duro é verificar que ele realmente ainda exista, como subproduto de um capitalismo voraz que se utiliza da pobreza e da miséria para cooptar pessoas para trabalho em condições desumanas. Tenho visto fazendas em que os estábulos para os animais são modelos de higiene e tratamento cuidadoso. Há locais, por seu lado, em que as pessoas arregimentadas para o trabalho são colocadas em verdadeiros chiqueiros. O objetivo do lucro multiplicado irmana o pensamento e a mentalidade do homem do Brasil Colônia ao homem do Brasil 6ª economia do mundo: para tornar a mercadoria competitiva é necessário diminuir o valor da mão de obra. Matemática simples, mas dolorosa.

A escravidão moderna no Brasil não se restringe, hoje, ao trabalho exercido no meio rural. A cada ano, milhares de trabalhadores são recrutados em desacordo aos direitos trabalhistas tanto nas fazendas, carvoarias, ou mesmo na construção civil e na indústria da confecção de roupas e calçados. Esse trabalho vem sendo exercido principalmente pelos estrangeiros que chegam ao Brasil em busca de um eldorado de oportunidades. Estima-se que apenas na Região Metropolitana de São Paulo existam atualmente 300 mil bolivianos, 70 mil paraguaios e 45 mil peruanos trabalhando em condições de trabalho degradantes.

Em dezembro de 2003, a Lei nº 10.803 alterou o artigo 149 do Código Penal brasileiro para punir com mais rigor quem reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. As penas previstas vão de dois a oito anos de reclusão, podendo ser aumentadas se o crime for cometido contra criança ou adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

O rigor da punição, embora não tenha diminuído a incidência do crime, motivou o aumento da fiscalização sobre as atividades rurais e urbanas que empregam mão de obra temporária, com o consequente incremento do número de casos que chegam ao Judiciário. Os órgãos de repressão ao trabalho escravo e as organizações não governamentais criadas para fiscalizar e prevenir a sua ocorrência reclamam da lentidão dos juízes em examinar esses casos. De fato, é preciso dar mais celeridade a esse tipo de processo, que envolve a vida de centenas de cidadãos espoliados no seu maior bem, que é a liberdade.

Mas, como já diziam sabiamente os romanos, a virtude está no meio. Há que se distinguir o joio do trigo e ter em mente que a rapidez no julgamento nem sempre leva a resultados justos. O aumento no número de casos trouxe consigo um consequente acréscimo da quantidade de denúncias e informações que depois se apura serem falsas ou precipitadas. Ao juiz compete analisar com firmeza e com segurança esses casos, mas sem se desvencilhar das provas que o embasam. Deve tomar todas as cautelas, investigando a veracidade dos fatos, para não cometer injustiças. Se é inegável que em pleno século 21 ainda existam pessoas submetidas à escravidão, ainda que com outra roupagem, é inadmissível que uma condenação dos apontados responsáveis se baseie apenas em notícias de jornais. O devido processo legal e o direito a um julgamento justo são também conquistas da sociedade moderna. E não são menos importantes do que o direito à liberdade.

Fonte: Correio Braziliense

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